quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Crítica de Marcelo Spalding - 07 de setembro de 2009

Cravo e Rosa para adultos e crianças
Marcelo Spalding

Já virou um bordão, mais do que um clichê: quando um espetáculo, uma música ou um livro para crianças é muito bom ele rompe as barreiras etárias e emociona também pais, tios, avós, professores, convertendo-se em não apenas numa obra para crianças, mas num espetáculo, música ou livro para todos, como qualquer bom espetáculo, música ou livro.

Canto de Cravo e Rosa, espetáculo infantil que recém fechou temporada no Teatro de Câmara Túlio Piva, é mais um bom exemplo disso. Viviane Juguero, a dramaturga, e Jessé Oliveira, o diretor, conseguem mesclar cantigas, música popular brasileira e muita acrobacia com uma narrativa instigante e universal, usando como mote as intrigas de uma aranha para separar o Cravo e a Rosa de seu jardim por invejar suas belas vozes.
O texto não subestima as crianças, sem medo de ser triste, de usar palavras "difíceis", de recorrer a monólogos e trocadilhos, e também não evita fechar com uma "moral da história", valorizando a diversidade como muito mais importante que a fama ou o talento individual. Mas é no intertexto com cantigas populares como "O Sapo não lava o pé", "Marcha Soldado", "Ciranda Cirandinha", "Escravos de Jó", "Mulher Rendeira" e, claro, "O Cravo brigou com a Rosa", que se controi a narrativa, e o grande acerto de Viviane foi costurar música e narrativa de forma que ambos se completem e levem a história adiante, sem referências forçadas nem prejuízo para o interessante conflito que se desenha em cena.
No palco, uma enorme teia de aranha, muitos instrumentos musicais e cores quentes ajudam a compor o cenário do jardim enquanto os atores entram com figurinos divertidos e versáteis, explorando cada um sua melhor qualidade, seja o salto do sapo ou a voz da rosa. E já na primeira cena um movimento dos atores forma uma minhoca de muitas pernas e evidencia que estamos diante de uma peça que vai muito além da encenação, exigindo esforço físico e disposição dos atores/músicos/acrobatas.

Tal disposição se evidencia nos inúmeros movimentos acrobáticos (alguns memoráveis, como a cena em que a aranha foge do sapo ou quando o sapo dorme), e tem na versátil Ana Cláudia Bernarecki um símbolo: primeiro porque, como aranha, ela passa boa parte do tempo pendurada nas teias do fundo do cenário; segundo pela força que mostra ao carregar o pesado Cravo nas costas de um lado para o outro do palco; e terceiro quando no final ainda mostra habilidades de equilibrista ao atravessar o palco há uns 3 metros de altura, sob o ruflar dos tambores e os olhinhos atentos do público.
Falando em público, é de salientar que a trupe consiga prender a atenção e agradar crianças de todas as idades, talvez muito pela sua versatilidade. E também seus pais, é claro, pela nostalgia das canções que todos ouvimos na infância (a interpretação de Viviane para "Peixe Vivo" é sublime àquela altura da narrativa), pela qualidade da encenação e pelos surpreendentes movimentos circenses.
Além de Ana Cláudia Bernarecki e Viviane Juguero, o elenco traz Diego Neimar, Ed Rosa, Ravena Dutra e Rodrigo Marques. Além de violão, bumbo, cavaquinho, trompete, flauta, tambor...

Postado em http://www.artistasgauchos.com.br/portal/?cid=300, dia 07 de setembro de 2009

Marcelo Spalding é formado em jornalismo e mestre em Literatura Brasileira pela UFRGS, professor da Oficina de Criação Literária da Uniritter, editor do portal Artistas Gaúchos, autor dos livros 'As cinco pontas de uma estrela', 'Vencer em Ilhas Tortas', 'Crianças do Asfalto', 'A Cor do Outro' e 'Minicontos e Muito Menos', membro do grupo Casa Verde e colunista do Digestivo Cultural. Recebeu o Prêmio AGES Livro do Ano 2008 pelo livro 'Crianças do Asfalto', categoria Não-Ficção, e o Prêmio Açorianos de Literatura em 2008 pelo portal Artistas Gaúchos.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Crítica de Maico Silveira - 02 de setembro de 2009

A sensação de ver um espetáculo no qual você trabalhou como ator sendo feito sem você é, no mínimo, curiosa. A impressão que se tem é a de que você saiu do seu corpo no momento em que fazia o espetáculo e começou a observar de fora, como naqueles filmes onde o cara sai do corpo e começa a observar de fora, sabe...?

E aí, muitas coisas ganham nova dimensão através da visão deste que inusitadamente assiste ao trabalho. Porque este conhece os detalhes da peça, as virtudes e os defeitos de cada ator, sabe quem está substituindo quem, sabe onde corre-se o risco de desafinar ou falhar na acrobacia, torce a cada momento, surpreende-se com uma nova intenção de texto dada pelo antigo colega de cena, ri e canta junto, batuca na perna... e dá pitaco. Então, longe de querer fazer uma crítica, quero apenas falar do que vi. O que orgulhosamente vi e que me fez sentir um espectador especial deste belíssimo espetáculo que é o Canto de Cravo e Rosa, no último dia 29.


Um ponto altíssimo desta temporada é o retorno de Viviane Juguero ao papel da Rosa. Encarando o papel de mãe durante algum tempo, não pôde estar presente no último ano de trabalho. A atriz que a substituiu o fazia muito bem, mas a questão é que a Vivi traz um certo brilho para a Rosa, uma clareza de fala, de voz (e que voz!) que é fundamental à personagem. Por outro lado, se a Vivi é uma excelente cantora, como atriz ainda tem um certo caminho a percorrer. O que me deixa muito feliz é perceber que, mesmo com tantos anos de carreira, as fichas continuam caindo e seu trabalho continua evoluindo. Acredito ter presenciado uma apresentação muito interessante, pois após as palavras de Antônio Hohlfeldt sobre o espetáculo, a atriz deu mais atenção à sua “máscara facial” e está encontrando as sutilezas de sua personagem de forma muito mais concreta.

Sutileza, aliás, que pode ser a palavra que define a evolução de Ana Cláudia e Éder RosaS no espetáculo. Nota-se que a aranha e o sapo estão muito mais à vontade em cena, encontram as sutilezas necessárias para que o público os compreenda bem. E a Aranhosa está desafinando como nunca! (o que – para quem não viu a peça – é um baita elogio, hein?).

Mas existe um porém nessa história toda, até porque nem tudo são rosas (nem cravos, com o perdão do trocadilho infame). Falta precisão nas ações dos atores, o que é algo de fundamental para que tudo funcione bem. Note-se que a precisão que eu aponto aqui não é somente do lado físico, mas também do lado vocal. O cravo Rodrigo Marquez – que está aos poucos descobrindo seu personagem – passa muitas vezes batido pelo texto, pelas intenções, pelas sutilezas que lhe dariam uma nova dimensão. Os gestos que executa carecem de intenção para que se transformem em ações físicas. E aí eu chamo muito a atenção para dois atores secundários que compõem maravilhosamente bem o elenco: Diego Neimar e Ravena Dutra. Eles aproveitam cada segundo em cena, trabalham com as mínimas ações possíveis. Diego brinca com o chapéu que o Cravo lhe lança durante a briga ao mesmo tempo que toca violão. Ravena não dá um só passo em falso ao longo de todo o espetáculo. Tudo o que ela faz está estudado, previsto, e recheado de intenções: um exemplo que deveria ser seguido pelos colegas.

Essa precisão de movimentos, de texto e de intenções é um excelente gancho para falarmos das acrobacias presentes no espetáculo. Isso porque às vezes ela perde sua função de corporificar o drama: a caça do Sapo à Aranha, a dor do Cravo, a surpresa do encontro da Rosa com a Aranha, a luta acidental entre o Sapo e o Cravo... Cada cena, cada movimento acrobático presente na peça foi pensado, discutido, articulado para que materializasse o conflito daquele momento. E uma simples execução pode dar a impressão errônea de que existem acrobacias demais e sem função, o que não é verdade em nenhum sentido.

Se meu pitaco se estendesse ainda à direção do trabalho, eu pediria para o Jessé Oliveira rever o início do espetáculo, que possui vários “falsos começos”. Pude perceber, estando dessa vez na platéia, que apesar de ser muito interessante como ambientação e despertar o interesse da criançada, a passagem excessiva de todos os personagens pela cena acaba colaborando para dispersar a atenção justamente por se estender demais.

Agora, se eu pudesse deixar aqui registrado o pitaco oficial deste que fez parte do processo de criação do espetáculo e tem muito orgulho do que viu como público, eu diria que, principalmente nesta peça, fazer teatro é brincar. Uma imagem, um gesto, uma intenção... tudo pode ganhar dimensões diferentes somente a partir da brincadeira. O espetáculo é uma cantiga, os atores estão (quase) em roda, e se a necessidade básica for a de se divertir, o resto (amadurecimento dos personagens, nuances, precisão) será conseqüência dessa diversão.

O mais importante é que o espetáculo avança, cresce cada vez mais. Olhando de fora, sinto aquela sensação de recompensa que temos quando olhamos para traz e vemos a linda história da qual fizemos parte.

Crítica postada no blog do artista: maicosilveira.blogspot.com
Maico Silveira é bacharel em Interpretação Teatral pela UFRGS e, atualmente, mora em Paris, onde aperfeiçoa seus estudos em Artes Cênicas.